sábado, 4 de novembro de 2017

Cuidar dos Cuidadores, por Sofia Ribeiro, deputada no parlamento europeu

Para que não passemos de um conjunto de boas intenções, é fulcral que se crie um estatuto do cuidador informal que reconheça este papel como um serviço público de trabalho efectivo que garanta direitos laborais, de formação e de assistência social.
Ao cuidador, não só deve ser garantido o acesso à (in)formação para a exigente tarefa de cuidar de outrem com mobilidade reduzida ou com as várias limitações, associadas por norma ao avanço da idade, bem como o apoio emocional para esta actividade que coloca continuamente o prestador à prova em termos psicológicos, ao lidar com doenças como as demências, as oncológicas, as degenerativas, entre outras. Ao cuidador é absolutamente imprescindível que se garantam os mais fundamentais direitos sociais, tais como a assistência na sua saúde ou dos seus dependentes, ou o acesso à reforma sem penalização na pensão. Ao cuidador deve ser facultado o acesso e formação contínua a instrumentos de tele-assistência ou outras tecnologias de informação e comunicação, investindo numa actualização de competências que facilite um futuro regresso ao mercado de trabalho, não prejudicando possíveis processos de trabalho parcial à distância.
Não tenho qualquer dúvida de que este constitui um desafio social da maior importância, que condicionará o nosso futuro. Estando associado à mudança de mentalidades, quer da sociedade, quer dos agentes políticos, tem repercussões no mercado de trabalho como o conhecemos nos dias de hoje e implica uma abordagem multidisciplinar, que integre profissionais de saúde, psicólogos, legisladores e assistentes sociais, entre outros.
Pode ler o artigo na integra aqui

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Rompendo o laço de confiança, por Ghauri Aggarwal, médica de cuidados paliativos em Sidney

No mês passado, a especialista em cuidados paliativos, Ghauri Aggarwal, discursou num seminário sobre cuidados paliativos e assistência na morte  organizado pela  MercatorNet no edifício do Parlamento da Nova Gales do Sul. Este é um breve resumo da sua apresentação. 
Nós temos sorte de viver no século XXI. A cura e a prevenção de doenças e o prolongamento da vida são viáveis. Olhamos para a medicina como forma de salvar as nossas vidas e vivermos durante mais tempo. No entanto, a consequência, é que a sociedade tem esta expectativa e, até, a exige. E, se esta expetativa não estiver disponível, as pessoas ficam aterrorizadas. Do que é que as pessoas têm medo? De morrer mal, de morrer sem controlo. Frequentemente perguntam-me porque é que escolhi os Cuidados Paliativos como especialidade médica. Eu fui conduzida para este campo da morte e das pessoas agonizantes quando era estudante de medicina, mesmo antes de esta área da medicina ser reconhecida como especialidade na  Austrália. Os cuidados paliativos já tinham sido evidentemente prestados em clínicas e  hospitais durante décadas mas, não era uma medicina convencional ou uma disciplina propriamente dita.
Ainda como estudante, via como as pessoas no fim de vida não eram adequadamente cuidadas, a sua  agonia não era muitas vezes diagnosticada e eram mesmo tristemente negligenciadas pelos médicos quando estes não sabiam como cuidar delas. Enquanto o resto da medicina estava a evoluir rapidamente,  as pessoas em fim de vida eram muitas vezes negligenciadas. O seu sofrimento não era uma prioridade. Como jovem médica, aprendi a arte de cuidar dos outros, testemunhei a angústia  que a doença, os seus sintomas e o estado terminal acarretam, não a todas mas, a algumas pessoas. O que aprendi foi que eu tinha uma vantagem preciosa: tempo, diálogo e construção de laços de confiança. Trabalhei, então, arduamente, para unir a ciência da medicina com a arte de cuidar. Depois de vinte e dois anos como especialista de cuidados paliativos para idosos, reconheço o forte poder de cura resultante da minha relação com os meus pacientes. A minha experiência  é necessária para ajudar, curar, confortar, aliviar. Nós, os especialistas em cuidados paliativos, temos de educar todos os trabalhadores em cuidados de saúde.
Aliviando a dor   
Com frequência a dor e outros sintomas são referidos como as grandes causas de preocupação das pessoas que se estão a aproximar do fim de vida. Mas, grandes avanços foram realizados. Os doentes, muitas vezes, verificam, com surpresa,  que o controlo da dor e de outros sintomas consegue ser feito  eficazmente até ao final. Nós temos a competência para prestarmos uma medicina boa e baseada na observação, assim como, a determinação e a experiência na utilização de medicamentos. Mas o sofrimento mais comum no fim da vida ultrapassa normalmente a dor física. É o medo de perder a autonomia, o medo de ser um peso para os outros, o medo de morrer.
Deixem-me dar-vos um exemplo. Uma mulher magra e franzina a morrer de cancro de intestino está na vossa unidade de cuidados paliativos, acompanhada pelas suas filhas. Existe riso  no quarto, recordação  de memórias passadas, amor e histórias. Quando eu entro, a atmosfera altera-se e torna-se mais séria. “Eu quero acabar com tudo agora,” ela diz. “Quero que faça alguma coisa por mim. Eu não quero continuar". Passamos a próxima meia hora a  minimizar os sintomas, a dor e os medos. Ela não tem muitas dores, apesar de estar fraca e cansada, como tal ajustamos a medicação. Ela fica então muito mais confortável. Quando saímos, o riso, as conversas e as lembranças continuam. E, cada vez que, as enfermeiras, a assistente social ou os médicos entram no quarto, repete-se o pedido. Rapidamente existe brincadeira entre o doente, os cuidadores e a família.
O pedido é feito agora com menos insistência. Suspeito que ela já só o faz por rotina. A família continua vigilante. As filhas dizem: “Este é um período maravilhoso com a nossa Mãe. Falamos de coisas que já tínhamos esquecido. Lembramo-nos agora.” Ela morre poucos dias mais tarde.
Nós não ignorámos o seu pedido; não evitámos o seu quarto. Comunicámos com ela e ela começou a confiar em nós. O seu pedido inicial era porque ela tinha medo de perder a sua autonomia, ser um fardo para a sua família e cuidadores e não ser tão ativa como antigamente. Ela aguentou e suportou durante bastante tempo. Foi confortada pela certeza de saber que nós estaríamos lá para lhe prestar os cuidados que ela precisava. Para as suas filhas, o seu falecimento foi mais suportável porque puderam passar bons momentos com a sua mãe.
Uma rede de cuidados
Durante os últimos três anos, a nossa unidade cuidou de 1,200 pessoas, que morreram- 400 mortes em cada ano, pelo menos, uma por dia. A experiência que, a minha equipa e, eu, temos, é significativa. E, apesar de cuidarmos de um grande  número de pessoas, 99% dos nossos pacientes nunca nos perguntam se podemos acabar com as suas vidas prematuramente. E, mesmo, quando isso é mencionado  alguma vez, normalmente não se repete. Os cuidados paliativos exigem experiência, perícia, habilidade de comunicação e uma profunda compreensão pelos reais medos e preocupações dos pacientes. É uma relação de confiança. Se esta confiança sagrada se quebra,  a cura, o tratamento e a experiência, perdem-se. Podemos  ganhar tanto com esta confiança e podemos perder tanto se, em vez de confiança, existir medo.
A história de M
Quando eu conheci a M, ela disse-me: “Eu sei que tenho cancro, sei que tenho pouco tempo de vida e quero a eutanásia. Sou da Holanda, o meu filho vive lá e não tenho aqui ninguém. Se eu estivesse lá, poderia fazê-lo, mas, eu estou aqui, por isso ajude-me”. Ela parecia bem quando nos conhecemos. Durante as semanas seguintes, encontrámo-nos com regularidade. Ela decidiu que não aceitaria mais tratamentos e, que isso, era uma escolha sua. Decidiu que medicamentos tomaria.
Acabei por conhecê-la bem como pessoa. Cada vez que nos encontrávamos ela dizia, “quando chegar a hora, eu terei a eutanásia.” Falámos dos seus objetivos e prioridades de vida. Ela tinha muito medo de morrer com dor e de morrer sozinha, ser um fardo para as pessoas que não conhecia e cuidavam dela. Um mês após o diagnóstico de linfoma (uma doença potencialmente tratável, mas tendo ela decidido não receber nenhum tratamento, uma escolha que nós apoiámos), ela começou a ficar mais fraca. As nossas conversas tornaram-se mais profundas e eu entendia-a melhor, mas, ela ainda pedia, com frequência, a eutanásia. O seu filho da Holanda veio mas regressou. Ela tinha dores mas, aceitou, que lhe atenuássemos as dores. E, a seguir, ela deixou de pedir a eutanásia. Não tinha dor física; só queria que  “fosse respeitada a sua vontade". No final, morreu sob os nossos cuidados, sem ser negligenciada, sem estar abandonada, sem estar sozinha e sem dores insuportáveis. Como a eutanásia fazia parte dos cuidados oferecidos na Holanda, era expectável que ela a quisesse e exigisse. Ela não tinha consciência das alternativas. As nossas conversas exploraram os seus medos, as suas necessidades de cuidados e as suas opções. Ela compreendeu-o no final, mas foi necessário tempo, esforço e habilidade.  
E, se a sua vida tivesse sido mutilada por ela acreditar que isso era o que era expectável para ela, mesmo antes de os sintomas aparecerem e, mesmo antes de precisar de cuidados?  
Quem pede a eutanásia? 
Tal como disse, dos milhares de doentes que cuido em cada ano, muito poucos pedem a eutanásia ou o suicídio medicamente assistido. A maioria pede para parar tratamentos agressivos que não os estão ajudar e que provocam efeitos secundários. Por vezes, estão com medo do final, querem que os tranquilizemos quanto aos cuidados e insistem numa morte natural. “Não façam nada para prolongar a minha vida”, dizem. Isto é o correto; isto é uma boa escolha para eles. Isto não é eutanásia. “Você não deixaria o seu cão ou gato morrer assim, porque é que você não acaba com isto agora?”, grita a filha do Sr. N.. A sua mulher está sentada à cabeceira, exausta. A vigília continua. Ele não tem dor, está a dormir, não está agitado, mas existe tristeza no ar. A filha pergunta novamente e depois diz “Não aguento isto” e, sai. A mãe comenta: “Ela está a lutar mas ele nunca a teria pedido” (ou seja, a eutanásia). “Eu dou valor ao tempo que temos juntos até ao seu último sopro”. Existem muitas pessoas naquele quarto; o homem agonizante, a sua mulher, a filha, o médico, a enfermeira. De quem é a voz mais alta? Quem decide o que vai acontecer? Normalmente, é este, o cenário. O pedido não é feito pelo paciente mas, pela família, angustiada, que espera que a dor termine. Portanto, quando a sociedade reclama o fim prematuro da vida, lembremo-nos que a tristeza resulta, frequentemente, da nossa perda pessoal, do nosso sofrimento e dos nossos medos.
Quando me fazem esses pedidos raros, normalmente são feitos pelos familiares das pessoas que estão a morrer. Existe sofrimento, existe dor, e, isso, é-lhes difícil e insuportável de tolerar.  Mas a nossa relação oferece-lhes a confiança de que nós nunca os abandonaremos. Eles ficam mais confiantes durante essas semanas e esses dias de agonia. Não voltam a perguntar porque nós temos um plano de cuidados; desenvolvemos uma relação; damos resposta aos seus medos mais profundos. Normalmente, com o toque do cuidado e com a arte de uma conversa profunda, é construída uma enorme confiança que se torna imensamente terapêutica.
O sofrimento não acaba totalmente mas os pacientes encontram respostas, cuidados e o reforço das relações ainda existentes.
Os mitos existentes à volta dos cuidados paliativos
Existem tantos medos e mitos à volta dos cuidados paliativos. Isto é aquilo que, com maior frequência, enfrentamos além do pedido de por termo à vida. O medo de iniciar morfina, o medo que os cuidados paliativos correspondam à eutanásia, o medo não conseguir fazer mais pelas pessoas. Existe uma crescente investigação e grandes descobertas nesta área da medicina que demonstram que essas convicções estão incorretas. Mas, os mitos impedem que os pacientes tenham acesso a bons cuidados e aos tratamentos que necessitam. Os doentes vêm ter connosco com o laço de confiança e esperança nos cuidados de saúde já quebrado e desgastado por falsas promessas de uma cura ou sobrevivência duradoura ou tratamentos tóxicos. A maioria deve-se à falta de uma discussão honesta, experiência em conversas profundas, recusando aquilo que não pode ser melhorado. O nosso trabalho consiste em reparar essas fissuras. São necessários, tempo, formação dos nossos colegas e recursos. Evidentemente que, isto é importante, devemos nisso investir e encontrar recursos. Este é o meu apelo para agir: preocupemo-nos com as pessoas, não ponhamos fim às suas vidas por a sociedade não despender do tempo, recursos e competência para este trabalho vital. A morte voluntariamente assistida é a derradeira medicalização da morte. Foi acrescentada à lista de opções clínicas quando os médicos não têm tempo e competência para lidar com o sofrimento complexo. Torna-se num procedimento fácil e disponível para médicos com pouco tempo, fracos recursos e pouca experiência. É esta a sociedade onde queremos viver?
 O importante laço de confiança entre o doente e o médico nunca deve ser quebrado. Se a opção de acabar com as vidas prematuramente se tornar disponível, isso aumentará o medo na maioria dos nossos pacientes. Irá impedir que eu desenvolva esta confiança vital com todos os meus pacientes.
 Esse laço de confiança oferece conforto, segurança e um controlo dos sintomas. E aquelas poucas pessoas que ainda sofram, não serão abandonadas. Continuaremos a caminhar ao seu lado na viagem mais íntima e vulnerável das suas vidas.
Ghauri Aggarwal, Professora Catedrática, é Diretora do Serviço de Cuidados Paliativos no Hospital Concord, em Sydney.